por Herley Leite de Paula e Silva
Introdução
Antes da leitura deste texto, recomendo que o leitor examine os artigos “A Ética” e “O Desenvolvimento Humano”, aqui mesmo neste blog.
Existem duas correntes ou concepções acerca da atitude que devemos ter em relação à ética, aos valores, aos direitos humanos e à diversidade cultural humana. Essas duas propostas são o universalismo cultural e o relativismo cultural.
O universalismo cultural defende que existem princípios universais para a ética, o direito e o desenvolvimento. Já o relativismo cultural desconfia da ideia de desenvolvimento e afirma que não existem princípios universais na humanidade, declarando que a ética e o direito varia totalmente de uma cultura para outra.
A posição deste blog é favorável ao universalismo cultural e contrária ao relativismo cultural. Porém, há um aspecto positivo do relativismo cultural que aceitamos, que é o da valorização da diversidade, considerando-se os direitos humanos. Quando se fala, então, em crítica, tratamos dos aspectos negativos e dos positivos.
A condenação ao imperialismo e ao racismo
Antes de fazermos uma discussão sobre relativismo ou universalismo cultural é preciso esclarecer que as ideias racistas e imperialistas são falsas e estão superadas. Portanto, o debate sobre as teorias universalistas ou relativistas não têm qualquer conotação racista.
Não existem raças na espécie humana. Toda a humanidade tem o mesmo DNA (Carvalho, 2024).
As teorias racistas estão totalmente equivocadas. E a discriminação por raça e etnia são crimes no Brasil (Site Planalto, 2024).
Todos os povos e etnias da Terra têm o mesmo potencial biológico, psíquico, social e cultural. Não existem povos ou raças superiores ou inferiores, como queriam os antigos darwinistas sociais (Burns, 2001, p. 633, 634).
As nações ricas e poderosas não são biologicamente ou culturalmente superiores aos outros povos e não possuem o direito de dominá-los ou explorá-los.
O aspecto positivo do relativismo cultural
O aspecto positivo do relativismo cultural é a valorização da diversidade nas culturas humanas, levando-se em conta os direitos humanos.
Existem aspectos universais e aspectos particulares nas culturas humanas.
S. Tomás de Aquino admitia algum relativismo na moral e no direito, sem, porém, negar a existência de princípios universais e permanentes. (Montoro, 1983, p. 333).
A variação entre as culturas pode ocorrer pelo desenvolvimento da razão, e pela diversidade e variação das condições humanas. (Montoro, 1983, p. 350).
Os princípios dos direitos humanos são necessariamente gerais e permitem uma variação entre as culturas. (Montoro, 1983, p. 357).
A natureza humana é universal e permanente, mas também é variável e plástica, permitindo uma notável diversidade em sua manifestação pelas culturas (Jolivet, 1966, p. 105).
A diversidade cultural é uma fonte de desenvolvimento em todos os campos. O respeito à diversidade cultural implica no respeito à dignidade humana. Assim, todos têm o direito de se expressar em suas línguas maternas, de manifestar sua identidade cultural e de exercer suas práticas culturais, desde que sejam respeitados os direitos humanos universais (UNESCO, 2024).
Da diversidade geográfica se originam diversos costumes e necessidades, que constituem as nações e povos, tornando necessárias leis adequadas a esses costumes e necessidades (Kardec, 2002, p. 264).
Não se deve forçar a assimilação cultural de um povo. Impor a um povo outra língua e outros comportamentos só cria resistências e novas barreiras ao diálogo cultural (Pierson, 1981, p. 244).
O desenvolvimento total não ocorre em apenas um único povo, de modo que este se torne modelo para os outros. O desenvolvimento é uma construção conjunta de todos os povos.
A evolução das sociedades não segue uma única linha, mas múltiplas linhas diferentes (Linton, 2000, p. 148).
A humanidade vai se unir cada vez mais, porém, isto não significa que o mundo terá a mesma língua, religião, arte, arquitetura, economia e mesmo vestuário (Linton, 2000, p. 60). A união e o desenvolvimento incluem também o respeito e a valorização da diversidade. A diversidade cultural é valorizada, mas deve se harmonizar com os direitos humanos universais, e com os imperativos do desenvolvimento humano.
O relativismo cultural pode, então, ser aceito até certo ponto, na medida em que se harmoniza com o universalismo cultural.
O aspecto negativo do relativismo cultural
Há uma forma extrema de relativismo cultural que rejeita totalmente o universalismo cultural e recusa por completo a ideia de princípios universais e permanentes para as culturas humanas. E esse relativismo também nega a ideia do desenvolvimento humano.
Vou colocar aqui alguns argumentos contrários a essa teoria relativista cultural radical. O relativismo, por exemplo, nega o desenvolvimento cultural.
Prefiro utilizar a expressão desenvolvimento cultural e não evolução cultural. A expressão evolução cultural transmite a ideia de um progresso determinista, automático e independente das interações culturais.
A expressão desenvolvimento cultural, ao contrário, leva em conta a liberdade dos povos e valoriza a importância do diálogo entre as culturas. O desenvolvimento implica a ideia de que todos os povos possuem os mesmos potenciais, e estes se desenvolvem, passando do virtual para o manifestado.
A civilização moderna vai se disseminar por todo o mundo. Os povos alcançarão a igualdade econômica e social e terão acesso a todas as tecnologias. Porém, isso não significa que as culturas ficarão todas iguais. Haverá muito espaço para a diversidade (Linton, 2000, p. 60).
A difusão cultural estimulou o progresso da cultura humana como um todo e enriqueceu as culturas particulares (Linton, 2000, p. 311).
A humanidade é dotada de um impulso para o desenvolvimento.
O ser humano tem uma tendência universal para enriquecer sua cultura. É como se o ser humano tivesse uma energia inquieta e estivesse sempre buscando soluções novas. E não é só pela necessidade que as pessoas criam. A criatividade continua mesmo quando as necessidades não são prementes (Linton, 2000, p. 93).
O desenvolvimento cultural humano é constante. A revisão cultural parece ser o resultado de um estímulo interior e não apenas de uma necessidade exterior (Linton, 2000, p. 96).
O desenvolvimento humano apresenta, ao mesmo tempo, semelhanças e diferenças.
A evolução humana é multilinear e as culturas não seguem estágios semelhantes (Pelto, 1984, p. 77).
As sociedades da Mesopotâmia, Egito, China, Peru e América Central passaram por processos semelhantes de crescimento cultural. O desenvolvimento seria resultado da criatividade dos povos em se adaptar a diferentes ambientes (Pelto, 1984, p. 77).
O relativismo cultural nega a natureza humana
O relativismo nega a existência de princípios universais nas culturas humanas. Também se pode dizer que ele nega a natureza humana.
Vou mostrar agora alguns argumentos em favor da existência da natureza humana.
Todas as pessoas têm a mesma natureza e dignidade. Todos têm uma igualdade fundamental e não podem ser considerados instrumentos (Montoro, 1983, p. 173).
As culturas variam, mas a natureza humana é a mesma. Por trás da diversidade cultural existe uma natureza humana universal (Pierson, 1981, p. 159, 160).
As culturas adotam soluções diferentes para problemas parecidos e as culturas não se desenvolveram através de fases idênticas. Porém, a humanidade possui uma unidade psíquica e cultural. Por exemplo, civilizações antigas que não tinham contato revelam sequências semelhantes em seu desenvolvimento. Há muitos universais culturais, ou padrões universais, na herança cultural dos povos. E as diversas linguagens e sistemas de lógica dos povos têm muitas semelhanças (Pelto, 1984, p. 77).
O direito natural é imutável e mutável ao mesmo tempo. É imutável na essência e nos princípios. Porém, é diverso em suas formas concretas e históricas. Por outro lado, há um progresso da humanidade na compreensão do direito natural (Jolivet, 1966, p. 113, 114).
O círculo da identidade e reconhecimento humanos se expandiu sucessivamente da família para aldeias, clãs, tribos, países, povos e, recentemente, para toda a humanidade. Passou a abranger todos os homens e incluiu as mulheres (Pinker, 2004, p. 233, 234).
Os princípios da ética não são simples invenções humanas, mas imperativos da lógica.
Se é imoral você me ferir, também é imoral eu ferir você. Nosso senso moral evoluiu de acordo com uma lógica intrínseca da ética, em vez de ser apenas uma invenção arbitrária (Pinker, 2004, p. 267).
O relativismo cultural fere o princípio da universalidade dos direitos humanos. Os direitos humanos valem para todos, independentemente da cultura (Barreto, 2006).
Alguns relativistas querem manter os povos isolados em nome de uma preservação cultural forçada.
Manter as culturas no isolamento não é uma estratégia correta, pois seus membros ficam impedidos de conhecer outras alternativas (Barreto, 2006).
A liberdade cultural é um direito humano, porém as culturas não devem ficar isoladas. Além disso, se alguns aspectos de uma cultura violam os direitos humanos universais, eles não devem ser incentivados (Barreto, 2006).
E, com esta última referência, encerro este artigo, esperando que ele tenha ajudado o leitor a questionar o relativismo cultural.
Referências
Barreto, Maíra de Paula. Universalidade dos Direitos Humanos e da Personalidade versus Relativismo Cultural. In: Anais Eletrônicos do 15º Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2006.
Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/manaus/estado_dir_povos_maira_de_paula_barreto.pdf
Acesso em 2024.
Burns, Edward McNall; Lerner, Robert E. Meacham, Standish. História da Civilização Ocidental: Do Homem das Cavernas às Naves Espaciais. Vol. 02. Tradução: Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Globo, 2001.
Site: História do Mundo. Carvalho, Leandro. Projeto Genoma e a Espécie Humana. (Acesso em 2024).
https://historiadomundo.uol.com.br/curiosidades/projeto-genoma-e-a-especie-humana.htm
Jolivet, Régis. Tratado de Filosofia IV: Moral. Tradução: Gerardo Dantas Barretto. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1966.
Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos: Filosofia Espiritualista. Tradução: José Herculano Pires. São Paulo. LAKE, 2002.
Linton, Ralph. O Homem: Uma Introdução à Antropologia. Tradução de Lavínia Vilela. 12ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Montoro, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. V. 01. 12ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.
Pelto, Pertti J. Iniciação ao Estudo da Antropologia. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.
Pinker, Steven. Tabula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Pierson, Donald. Teoria e Pesquisa em Sociologia. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1981.
Site: Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. (Acesso em 2024).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7716.htm
Site: UNESCO. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. UNESDOC Digital Library. Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural. (Acesso em 2024).
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000127160